04 janeiro 2006

Serradura

A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.

E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.

Pois é assim: a minha Alma
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só pelúcias.

Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o «Matin» de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo:

Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não passa.

Folhetim da «Capital»
Pelo nosso Júlio Dantas -
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual...

O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia!...

Qualquer dia, pela certa,
Quando eu mal me precate,
É capaz dum disparate,
Se encontra uma porta aberta...

Isto assim não pode ser...
Mas como achar um remédio?
- P'ra acabar este intermédio
Lembrei-me de endoidecer:

O que era fácil - partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo
De barrete de papel

A gritar «Viva a Alemanha»...
Mas a minha Alma, em verdade,
Não merece tal façanha,
Tal prova de lealdade...

Vou deixá-la - decidido -
No lavabo dum Café,
Como um anel esquecido.
É um fim mais raffiné.

Mário de Sá Carneiro | Paris, Setembro de 1915

Lembrei-me deste poema hilariante do Mário de Sá Carneiro esta tarde, pensando que este ano começou sem que eu saiba o que me vai acontecer... as hipóteses são imensas a todos os níveis: mudo de emprego ou não mudo de emprego, vou viver sozinha ou não vou viver sozinha, vou de férias para a praia ou para outro sítio qualquer. emocionalmente, então, o melhor é nem desfiar hipóteses :) ando de montanha russa há demasiado tempo para achar que agora vou descobrir uma linha recta.

e no meio de todos estes desafios,

A minha vida sentou-se
E não há quem a levante

estou basicamente à espera de tudo - fiz todas as minha jogadas possíveis no ano velho, resta-me esperar para ver no que elas resultarão. e até lá, treino a minha paciência e a minha persistência, jogando sudoku!

1 comentário:

Calíope disse...

Acho que a mudança do ano apela a todos a crónica vontade de fazer-se pela vida... mas é engraçado que neste em particular e nos 4 dias que já passaram eu já vi amigos que vão mudar de emprego, que vão de férias para a praia e que vão comprar casa. No que me toca a mim, continua tudo na mesma...